domingo, julho 09, 2006

O Papa Bento XVI e a tradição - 3


Na audiência geral que concedeu em 3 de Maio passado, o Papa Bento XVI prosseguiu a sua prelecção sobre a natureza da tradição apostólica. De seguida, e como impõem as regras basilares do rigor e da honestidade intelectual, transcrevo na íntegra o teor daquela, realçando as passagens que se me afiguram mais importantes. Por ora, sublinho que dela se conclui - como se dúvidas sobre isso existissem... - rejeitar o Papa liminarmente o chamado "espírito do V2" tão do agrado dos hereges modernistas e progressistas, bem como a hermenêutica de ruptura que lhe é adstrita. Assim:

Queridos irmãos e irmãs

Nestas Catequeses desejamos compreender o que é a Igreja. A última vez meditámos sobre o tema da Tradição apostólica. Vimos que ela não é uma colecção de objectos, de palavras como uma caixa que contém coisas mortas; a Tradição é o rio da vida nova que vem das origens, de Cristo até nós, e envolve-nos na história de Deus com a humanidade. Este tema da Tradição é tão importante que também hoje desejo deter-me sobre ele: de facto, é de grande importância para a vida da Igreja.

O Concílio Vaticano II realçou, a este propósito, que a Tradição é apostólica antes de tudo nas suas origens: "Dispôs Deus, em toda a sua benignidade, que tudo quanto revelara para a salvação de todos os povos permanecesse íntegro para sempre e fosse transmitido a todas as gerações. Por isso, Cristo Senhor, em quem se consuma toda a revelação de Deus Sumo (cf. 2 Cor 1, 30; 3, 16; 4, 6), mandou aos Apóstolos que pregassem a todos os homens o Evangelho... como fonte de toda a verdade salutar e de toda a disciplina de costumes, comunicando-lhes os dons divinos" (Const. dogm.
Dei Verbum, 7).

O Concílio prossegue, anotando como tal empenho foi fielmente seguido "pelos Apóstolos que, pela sua pregação oral, exemplos e instituições, comunicaram aquilo que tinham recebido pela palavra, convivência e obras de Cristo, ou aprendido por inspiração do Espírito Santo" (
ibid.). Com os Apóstolos, acrescenta o Concílio, colaboraram também "varões apostólicos que, sob a inspiração do mesmo Espírito Santo, escreveram a Mensagem da salvação" (ibid
.).

Como chefes do Israel escatológico, também eles doze como doze eram as tribos do povo eleito, os Apóstolos continuam a "recolha" iniciada pelo Senhor, e fazem-no antes de tudo transmitindo fielmente o dom recebido, a boa nova do Reino que veio até aos homens em Jesus Cristo. O seu número expressa não só a continuidade com a santa raiz, o Israel das doze tribos, mas também o destino universal do seu ministério, que leva a salvação até aos extremos confins da terra. Pode-se captar isto do valor simbólico que têm os números no mundo semítico: doze resulta da multiplicação de três, número perfeito, e quatro, número que remete para os quatro pontos cardeais, e portanto para todo o mundo.

A comunidade, que surgiu do anúncio evangélico, reconhece-se convocada pela palavra daqueles que foram os primeiros a fazer a experiência do Senhor e por Ele foram enviados. Ela sabe que pode contar com a orientação dos Doze, como também com a de quantos a eles se associam pouco a pouco como sucessores no ministério da Palavra e no serviço à comunhão. Por conseguinte, a comunidade sente-se comprometida a transmitir aos outros a "feliz notícia" da presença actual do Senhor e do seu mistério pascal, que age no Espírito.

Isto é bem evidenciado nalguns trechos do epistolário paulino: "Transmiti-vos... o que eu próprio recebi" (1 Cor 15, 3). E isto é importante. São Paulo, como se sabe, originariamente chamado por Cristo com uma vocação pessoal, é um verdadeiro Apóstolo e, contudo, também para ele conta sobretudo a fidelidade a quanto recebeu. Ele não queria "inventar" um novo cristianismo, por assim dizer "paulino". Por isso insiste: "Transmiti-vos... o que eu próprio recebi". Transmitiu o dom inicial que vem do Senhor e é a verdade que salva. Depois, no fim da vida, escreve a Timóteo: "Guarda, pelo Espírito Santo que habita em nós, o precioso bem que te foi confiado" (2 Tm 1, 14).

Mostra isto com eficiência também este antigo testemunho da fé cristã, escrita por Tertuliano por volta do ano 200: "(Os Apóstolos) no princípio afirmaram a fé em Jesus Cristo e estabeleceram Igrejas para a Judeia e logo a seguir, espalhados pelo mundo, anunciaram a mesma doutrina e uma mesma fé às nações e, por conseguinte, fundaram Igrejas em cada cidade. Depois, delas, as outras Igrejas mutuaram a ramificação da sua fé e as sementes da doutrina, e continuamente a mutuam para serem precisamente Igrejas. Desta forma também elas são consideradas apostólicas como descendência das Igrejas dos apóstolos" (De praescriptione haereticorum, 20: PL 2, 32).

O Concílio Vaticano II comenta: "Aquilo que os Apóstolos transmitiram compreende todas aquelas coisas que são necessárias para que o Povo de Deus viva santamente e para que aumente a sua fé, e deste modo a Igreja, na sua doutrina, vida e culto, perpetua e transmite a todas as gerações tudo o que ela é, tudo o que ela acredita" (Const.
Dei Verbum
, 8). A Igreja transmite tudo o que ela é e crê, transmite-o no culto, na vida, na doutrina. A Tradição é, portanto, o Evangelho vivo, anunciado pelos Apóstolos na sua integridade, com base na plenitude da sua experiência única e irrepetível: pela sua acção a fé é comunicada aos outros, até nós, até ao fim do mundo.

Por conseguinte, a Tradição é a história do Espírito que age na história da Igreja através da mediação dos Apóstolos e dos seus sucessores, em fiel continuidade com a experiência das origens. É quanto esclarece o Papa São Clemente Romano nos finais do século I: "Os Apóstolos escreve ele anunciaram-nos o Evangelho enviados pelo Senhor Jesus Cristo, Jesus Cristo foi enviado por Deus. Cristo vem portanto de Deus, os Apóstolos de Cristo: ambos procedem ordinariamente da vontade de Deus... Os nossos Apóstolos chegaram ao conhecimento por meio de Nosso Senhor Jesus Cristo que teriam surgido contendas acerca da função episcopal. Por isso, prevendo perfeitamente o futuro, estabeleceram os eleitos e deram-lhe por conseguinte a ordem, para que, quando morressem, outros homens provados assumissem o seu serviço" (Ad Corinthios, 42.44: PG 1, 292.296).

Esta corrente do serviço continua até hoje, continuará até ao fim do mundo. De facto, o mandato conferido por Jesus aos Apóstolos foi por eles transmitido aos seus sucessores. Além da experiência do contacto pessoal com Cristo, experiência única e irrepetível, os Apóstolos transmitiram aos Sucessores o envio solene ao mundo recebido do Mestre.

Apóstolo deriva precisamente da palavra grega "apostéllein", que significa enviar. O envio apostólico como mostra o texto de Mt 28, 19s. exige um serviço pastoral ("fazei discípulos de todas as nações..."), litúrgico ("baptizai-as...") e profético ("ensinando-lhes a cumprir tudo quanto vos tenho mandado"), garantido pela proximidade do Senhor até à consumação do tempo ("eis que Eu estarei convosco todos os dias até ao fim do mundo").

Assim, de uma forma diferente da dos Apóstolos, temos nós também uma experiência verdadeira e pessoal da presença do Senhor ressuscitado. Através do ministério apostólico é o próprio Cristo que alcança quem está chamado à fé. A distância dos séculos é superada e o Ressuscitado oferece-se vivo e operante por nós, no hoje da Igreja e do mundo. Esta é a nossa grande alegria. No rio vivo da Tradição Cristo não está distante dois mil anos, mas está realmente presente entre nós e doa-nos a Verdade, e doa-nos a luz que nos faz viver e encontrar o caminho para o futuro.

JSarto

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