terça-feira, maio 02, 2006

Dos animais e dos homens


Caro Jansenista, com a salvaguarda do devido respeito, julgo que interpretou erradamente as minhas palavras. Não pretendi afirmar que a dignidade do homem, a qual decorre também do facto de ele ser dotado de inteligência criativa e consciência moral, admite excepções; ao invés, o que intentei realçar é que pela circunstância de alguns homens concretos ainda não terem ou haverem acidentalmente perdido a inteligência criativa e a consciência moral, nem por isso se pode deixar de sustentar que tais faculdades são exclusivamente humanas, e que diferenciam de modo decisivo o homem de todos os animais. Permita-me um exemplo: tal como a existência de algumas raças de cães mais pequenas do que as raças de gatos não obsta a que se conclua que os cães em média são maiores que os gatos, também o circunstancialismo de alguns homens não possuírem inteligência criativa e consciência moral não impede que se defenda com segurança que essas características distinguem genericamente os humanos dos outros seres vivos.

Sinto sempre a maior relutância quando ouço falar em "direitos dos animais". Pergunto: os animais têm direitos? Como é possível algo - mesmo um ser vivo - ter direitos, se é desprovido de personalidade jurídica e do suporte lógico que a antecede, a consciência moral? Por mim, prefiro sufragar o entendimento - e há muito que o faço - de que o homem tem o dever ético de tratar dignamente todos os restantes seres que com ele habitam a Terra, frutos que são da criação divina, escusando-se de lhes infligir quaisquer sofrimentos inúteis, e limitando-se a provocar-lhes aqueles que são estritamente necessários à satisfação das necessidades humanas fundamentais de alimentação, vestuário e defesa face à doença (onde se inclui a experimentação médica e científica). Deste modo, rejeito toda a dor causado aos animais por motivos de prazer lúdico ou de mera futilidade, de que são exemplos as touradas, as matanças de porco à antiga portuguesa, o tiro desportivo aos pombos, ou esse selvático passatempo nacional que é o atropelamento deliberado nas estradas de cães, gatos e ouriços.

Se é este o juízo que o meu caro Jansenista sobraça sobre o assunto, então eu estou ao seu lado e compreendo perfeitamente a razão do seu empenho em prol dos animais, tal como sufrago plenamente a sua defesa dos mais fracos dos humanos; se ao invés, o que eu não acredito, pretende a total equiparação jurídica dos animais aos homens, com todos os seus corolários lógicos, dos quais o mais óbvio é a imposição do vegetarianismo coercivo, aí os nossos caminhos bifurcam-se forçosamente.

E porque no seu belíssimo "Ashram" transcreveu duas citações da Bíblia, permita-me que relembre o ensinamento católico tradicional plasmado na "Suma Teológica", de São Tomás de Aquino (Tratado da Justiça, II, II, Questão 64, Artigo 1º):

Se é lícito matar qualquer vivente

Parece que é ilícito matar qualquer vivente, porque:

1. Diz o Apóstolo aos Romanos: "Aqueles que resistem à ordem divina, disso retiram a sai condenação" (12, 2). Mas por ordenação da providência divina conservam-se todos os viventes, como diz o Salmo: "Quem produz o feno no monte e dá de comer aos animais" (146, 8). Logo, parece ilícito matar qualquer ser vivente.

2. Além disso, o homicídio é pecado, por privar o homem da vida. Mas a vida é algo de comum ao homem, aos animais e às plantas. Logo, matar qualquer vivente é pecado.

3. Finalmente, na lei divina só se castiga o pecado. Mas quando alguém mata a ovelha, ou o boi doutro deve ser castigado com uma pena determinada no Êxodo, cap. 22. Logo, matar os animais irracionais é pecado.

No entanto, diz Agostinho em "A Cidade de Deus", livro 1, cap. 20: "A ordem "Não matarás", não se refere às árvores frutíferas, posto que não têm sentidos; nem aos animais irracionais porque, pela sua falta de razão, não se podem equiparar ao homem. Logo, não subsiste senão o que se refere apenas a não matar o homem".

Respondo: Ninguém peca por usar uma coisa conforme ao fim para que ela foi feita, e na ordem das coisas, as menos perfeitas existem para as mais perfeitas, assim como a natureza procede do menos perfeito ao mais perfeito nas espécies. E, assim como na geração do homem, primeiro existe o ser vivente em geral, depois o animal e, finalmente, o homem, assim também aqueles seres que só têm a perfeição da vida, como as plantas, existem em função dos animais, e os animais em função do homem. Portanto, se o homem usa as plantas para bem dos animais, e estes para bem do homem, não comete nada ilícito, como diz o Filósofo na "Política", livro 1, caps. 5 e 7.

E entre todos os usos, o mais necessário parece ser o das plantas servirem de alimento aos animais, e estes aos homens, o que não poderia levar-se a cabo se estes não fossem mortos. Portanto, é necessário matar as plantas para os animais, e estes para o homem, segundo o plano da ordem divina, como diz o Génesis: "Eis aqui que vos dei toda a erva e todas as árvores, para que vos sirvam de alimento, e também todos os animais da terra" (1, 29). E mais adiante: "servir-vos-á de alimento qualquer ser vivo que se mova" (9, 3).

1. À primeira dificuldade responde-se que, por ordenação divina, a vida dos animais e das plantas tem que se conservar, não por si mesma, mas em função dos homens. Por isso diz Agostinho em "A Cidade de Deus", livro 1, cap. 20: "Por justíssima ordenação do Criador, a vida e a morte dos animais e das plantas está subordinada ao homem".

2. À segunda, que os animais irracionais e as plantas não têm vida racional, pela qual se possam conduzir nas suas operações, mas que actuam sempre levados pelo impulso natural; que é sinal de que são naturalmente servos destinados ao uso de outros seres.

3. À terceira, que aquele que mata o boi de outro, peca não por matar o boi, mas por causar um prejuízo ao próximo numa das suas propriedades; logo, o pecado não era de homicídio, mas de roubo ou rapina".


JSarto

(Fotografia via SanzalAngola - Suricata do Deserto de Moçâmedes)

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