quinta-feira, novembro 25, 2004

Júlio Fleichman

[O Rafael encheu-se de coragem e, em estreia, escreveu este artigo em português].
O sempre mais que recomendável O Indivíduo entrevistou o Dr. Júlio Fleichman, um dos principais discípulos de Gustavo Corção. A Casa de Sarto reproduz parte da entrevista. O Dr. Júlio Fleichman é um judeu convertido ao Catolicismo, e pai de Dom Lourenço Fleichman, O.S.B., grande homem de Igreja e um firme defensor da Tradição.
Dedico este postal ao nosso caro amigo e leitor Jacobo San Miguel: ele sabe muito de Benjamín Benavides, de Santa Edith Stein, de São João da Cruz, do pai Leonardo Castellani e de Sören Kierkegaard. Pela minha parte não posso por menos de recomendar ao Jacobo e aos nossos leitores o livro de o dr. Júlio Fleichman
“O Itinerário Espiritual da Igreja Católica”, uma análise escatológica em profundidade da História da Igreja.

O INDIVÍDUO: Como foi o seu encontro com Gustavo Corção? Como o senhor chegou a conhecê-lo?
Dr. Júlio Fleichman: Eu era um judeu já adulto e tinha um amigo chamado Frederico de Carvalho. Nós tínhamos um grupo de amigos de 19, 20 anos, e nos encontrávamos à noite e andávamos pelas ruas. O que fazíamos principalmente era discutir. Discutíamos cultura, arte, filosofia, política – tudo provavelmente na base da chutação. Éramos três ou quatro. Um deles, Frederico de Carvalho, era mais velho e não participava muito das discussões. Mas às vezes fazíamos as conversas na casa dele, porque ele era o único casado. Ele conhecia um centro chamado "Resistência Democrática" que tinha sido fundado por escritores e políticos católicos, e um socialista chamado Hílcar Leite, que era um socialista de tipo raro, que acho que hoje em dia não existe mais, porque ele era de uma idoneidade intelectual fora do comum. Essa instituição tinha grandes personalidades, como Fernando Carneiro e Gustavo Corção, e lá aconteciam debates, freqüentemente muito engraçados.
O fato é que o Frederico nos levou a esse ambiente, e nos falava de Corção, que tinha lançado seu primeiro livro, "A descoberta do outro", e tinha sido saudado pela crítica como uma revelação, foi comparado a Machado de Assis. Esse livro conta a história da conversão de Corção, que aconteceu aos 40 anos. Então, eu comecei a freqüentar esse grupo e me encantei. Na época, eu não era religioso, não era judeu praticante. Também não me envolvia diretamente em política; tinha tido simpatias pelo comunismo, mas nunca me envolvi muito. Agora, eu tinha interesse pelo assunto. E nesses debates Gustavo Corção ganhava, porque ele era muito vivo, muito culto, muito engraçado, e ele logo atraía a atenção das pessoas. Me interessei muito por ele e ouvi dizer que ele tinha um curso, que ele dava umas aulas de religião no Centro Dom Vital, que naquele tempo era na Praça Quinze. Era um prédio que pertencia, ou era emprestado à Cúria, e tinha lá os cursos religiosos, entre os quais o do Corção. E eu ia para lá.
Embora não religioso, eu me interessava particularmente pela inteligência dele. Havia lá uns dez, doze pessoas, todos moços, mas, em geral, mais velhos do que eu, todos casados. Naturalmente, eles, como católicos já praticantes, me olhavam como uma presa a ser capturada com interesse de conversão e havia entre nós um debate, fora da aula, onde nós discutíamos muita política. Eu ficava furioso, porque ainda tinha simpatias pelo comunismo e eles eram amigos de Carlos Lacerda, que nessa época, isso foi em 1950, estava fundando a "Tribuna da imprensa". Ele era cronista do "Correio da manhã", e eu não o lia e não gostava. Mas fiquei irritado com a campanha dele contra o candidato comunista nas eleições de 1950, que se chamava de Fiúza, e ele chamava de Rato Fiúza.
Foi quando começava a surgir a "Tribuna da imprensa" e Corção escrevia lá uma pequena crônica, sempre muito engraçada, e me apaixonei pela personalidade e pela inteligência dele.
Naquela época, eu era um leitor ávido, lia tudo que me caía nas mãos. Li um livro de um escritor inglês chamado Chesterton, um católico polemista muito vivo, amigo mas oponente de Bernard Shaw, e um livro de São Tomás. E eu fiquei furioso com aqueles livros.
Um amigo meu virou-se para mim e perguntou por que é que eu tinha toda aquela gana contra esse tipo de católico. Por que essa raiva toda?. E eu olhei para ele e não soube responder.
Depois, me caiu nas mãos um livro de Kierkegaard, A angústia humana. E eu gostava de andar na rua pensando nessas coisas que eu lia, até que um dia, de repente, me aconteceu uma espécie de ajuste. Foi como se dentro da minha alma alguma coisa que estava distorcida, contorcida, se colocasse no lugar. E me deu um vento interior de sanidade – não tive nenhuma revelação, mas senti um bem estar, como se eu, enfim, entendesse certas coisas. Até então eu tinha uma reputação de doutor-sabe-tudo junto a meus amigos, e o fato é que tudo que me aparecia, inclusive o catolicismo, que eu desprezava, tudo eu enquadrava numas certas colocações que, no fundo, significavam que eu julgava que sabia tudo, que tinha tudo mais ou menos equacionado.
Com esse livro do Kierkegaard, e com esse ajuste, eu de repente me dei conta de um universo que eu simplesmente não sabia que existia, que era o da minha alma, meu eu interior. A minha vida interior era angustiada, sem eu perceber. No Kierkegaard tinha um capítulo inteiro onde ele dizia que a situação do mundo era justamente essa, viver numa angústia que nem percebe. Era a angústia de uma distorção espiritual em que as pessoas vivem sem nem perceber. Era o meu caso.
E as coisas que eu estava lendo começaram a fazer sentido. Comecei a ver que a tal cultura, a tal mentalidade que eu tinha, e pensava que o universo inteiro cabia dentro dela, era uma caixinha de fósforos pequeninha e errada, e o universo era uma coisa muito mais ampla, complexa e rica do que a minha caixinha.
Com isso, e com a freqüência ao Centro, e depois passei a freqüentar o mosteiro de São Bento, eu fui começando a perceber esse tipo de universo amplo, até que um dia fui bater no mosteiro e pedi a dom Marcos Barbosa que me batizasse. A primeira vez que ele marcou eu não fui, eu fugi, mas depois eu fui finalmente batizado. Frederico de Carvalho foi o meu padrinho e apareceram três freiras do Sion a quem Corção tinha pedido que rezassem pela minha conversão. Afinal, me converti e nunca mais deixei o Corção e segui firme no caminho que tinha que seguir.
Comecei a ajudar Corção na medida do possível. O Centro Dom Vital tinha sido fundado por Jackson de Figueiredo no princípio do século. Era uma organização que reunia escritores católicos. Na época, o presidente do centro era Alceu Amoroso Lima e, quando comecei a freqüentar o centro, procurei assistir às aulas dele, mas logo me enchi. Vi que aquilo era un negócio meio sumário, apesar da grande fama de scholar que ele tinha. Um esquerdista da época, Joaquim Pimenta, dizia que a cultura dele era uma cultura de fichário. E devia ser mesmo. Ele dividia todos os problemas em três e aí ia tratando deles. Para um novato, no princípio, era muito interessante, porque ele simplificava os problemas e ele resolvia tudo, mas logo descobríamos que não era assim, que aquilo era muito simplório.
Em 1963, o Alceu começou a tomar posições esquerdistas e entrou em conflito com Corção, que era vice-presidente. Então, saímos do Centro e, mais tarde, em 1968, fundaríamos a Permanência.
A Permanência foi fundada com todo o apoio do episcopado da época, o cardeal-arcebispo do Rio de Janeiro celebrou a missa de fundação. Alugamos o quarto de empregadas da casa de umas polonesas que tinham ali uma organização de senhoras polonesas, e ali fazíamos as conferências e as missas. Com a missa do cardeal, foi fundada religiosamente a Permanência.

Rafael Castela Santos

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